Mulheres e Homens: construindo novas relações.Carta aos Efésios 5,21-33. Por CEBI-MG, set 2023

Mulheres e Homens: construindo novas relações.Carta aos Efésios 5,21-33. Por CEBI-MG, set 2023
12 de setembro de 2023 CEBI MG

MULHERES E HOMENS: construindo novas relações (Efésios 5, 21-33)

Introdução

A “Carta” aos Efésios foi escolhida como texto de estudo e reflexão para o Mês da Bíblia deste ano. Muito provavelmente, esta escolha se deu em razão da intensificação das sérias dificuldades que temos enfrentado nas relações humanas, pautadas por discórdias, intolerância, desrespeito e preconceito contra a diversidade étnica, moral, política, religiosa e às orientações sexuais. Causando divisões entre as pessoas, intensificando a cultura do ódio e a consequente violência física e psicológica.

Esta “Carta” mostra a importância de sermos comunidades e família acolhedoras e amorosas neste tempo sombrio, cheio de incertezas e rancor. Quando nos deixamos iluminar e penetrar pelo misterioso amor de Deus, vamos acolhendo as diferenças próprias de cada pessoa, com sua cultura e costumes. Esta busca de amar e de acolher sem impor a própria cultura, mas anunciando a Boa-Nova de Jesus Cristo, foi unindo comunidades e gerando partilhas. Todo amor é graça, é dom de Deus, é o sinal da presença de Jesus que veio anunciar o amor e a paz. Ele é a referência e a inspiração para uma nova humanidade, sempre em processo de reconstrução.

Apenas por esta breve introdução vimos que a “Carta” é muito bela e traz uma proposta de vida humana e cristã maravilhosa, cativante. No entanto, encontramos nela “uma pedra no caminho”, “um espinho na carne”, “uma pedra no sapato”, que nos deixa muito incomodados e desconfortáveis diante da proposta do Amor, da misericórdia e da dignidade de todas as pessoas, filhas de Deus, Pai e Mãe.

Trata-se do seu trecho – 5,21–33, sobretudo nos vv. 22-24: “As mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor, pois o homem é cabeça da mulher, como também Cristo é cabeça da Igreja, ele que é o salvador do corpo. E como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo aos maridos”.

É sobre este texto que resolvi me debruçar para dissecar suas “razões”, imprecisões e contradições com os princípios básicos da Fé Cristã. A falta de informação da sua inoportuna presença nesta carta e sua leitura enviesada muito contribui para a perpetuação do patriarcalismo machista em nossos dias, causador da submissão das mulheres, das desigualdades de seus direitos em relação aos homens e até do horripilante feminicídio.

Realizaremos este desafio em quatro passos, em níveis crescentes de esclarecimento da questão, partido do mais elementar: a leitura minuciosa do texto em questão. Em seguida mostraremos as contradições do texto com a doutrina de Paulo e, mais ainda, com a prática de Jesus. Por fim, traremos à tona o contexto sociocultural das Comunidades Cristãs (ano 85 d.C.) e os “Códigos de Conduta Familiar” ou “Códigos Domésticos”, presente na sociedade romana daquele tempo, realidade desconhecida e fundamental para a compreensão da existência desse texto na “Carta”.

Desejo que este modesto trabalho contribua para que as famílias, as Pastorais e Movimentos Familiares, Encontros de Casais e Grupos de reflexão se despertem para uma leitura bíblica mais atenta e façam uma séria e profunda revisão de suas relações interpessoais, superando, criticamente, a dominação patriarcal e machista presente na sociedade atual e até no seio das “famílias cristãs”.

Quatro passos para desconstruir/desfazer/superar o mal-estar (violência) em relação às (ou contra as) Mulheres – 5,21–33

  • Primeiro passo: realizar uma leitura atenta do texto – 5,21-33

Transcreveremos apenas os textos menores, os maiores deverão ser lidos na própria Bíblia, tendo cuidado com certas traduções, algumas delas tornam o texto ainda mais estranho.

Geralmente, se inicia a leitura a partir do v. 21: “Sejam submissos (todos/as) uns aos outros no temor de Cristo”. Em seguida vv. 22-24: “As mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor, pois o homem é cabeça da mulher, como também Cristo é cabeça da Igreja, ele que é o salvador do corpo. E como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo aos maridos”.

Em primeiro lugar, quando se lê o texto não se dá a devida atenção e ênfase ao v. 21, ele fica como foi transcrito, na penumbra e os seguintes em destaque. Nem se chama a atenção de que ele (v.21) é uma exigência para TODOS/AS.

Como também não se lê na “Carta” os textos 4,32–5,2: “Sejam bons e misericordiosos uns com os outros, como também Deus perdoou a vocês em Cristo. Portanto, tornem-se imitadores de Deus, como filhos amados. E caminhem no amor, como também Cristo amou vocês e se entregou por nós a Deus, como oferta e sacrifício de suave perfume”.

Isto é importantíssimo, pois estes vv. omitidos são princípios/recomendações fundamentais da doutrina cristã, portanto, referência e indicativos de conduta para a vida de toda pessoa seguidora de Cristo (homens e mulheres).

Outro detalhe que salta aos olhos, mas não se dá atenção a ele, é o seguinte: há três versículos (vv. 22-24) apresentando as recomendações para as mulheres, falando da submissão delas aos maridos, porém, há oito versículos (vv. 25-33) falando das obrigações dos maridos em relação às mulheres. Será que se percebe isto?  Não se trata apenas de uma desproporção numérica, mas de uma carga de exigências, para os maridos, genuinamente cristã, como veremos abaixo. Dizem os entendidos da Análise do Discurso, que a qualidade, ou a pertinência das palavras, pode ser mais significativa do que a quantidade. Neste caso, os três versículos em relação às mulheres, embora sejam menos que oito para os homens, têm um “peso” significativo mais marcante. Ou, se preferirmos: têm mais poder. Há palavras que suavizam, outras que cortam, outras que ferem, outras que marcam, outras que violentam.

E mais. Nas recomendações para as mulheres (vv. 22-24) há dois atenuantes que tornam a exigência menos grave, menos desumana: que as mulheres sejam “submissas a seus maridos como ao Senhor” e “como a Igreja está submissa ao Cristo”. Mas, dificilmente, alguém atenta para isto. Convém lembrar que a submissão ao Senhor, não significa domínio, imposição autoritária, humilhação, basta lembrar as afirmações de Jesus: “Eu vim fazer a vontade do meu Pai” (João 5,19; 6,38) e “Eu e o Pai somos um” (João 10,30).

No entanto, isto pouco contribui para resolver o mal-estar, o impacto emocional e psicológico negativo, humilhante, causado nas mulheres ouvintes e torna-se uma reafirmação do ego masculino dominador, agora com respaldo sagrado da “palavra de Deus”. Em nossa cultura linguística “submeter” implica SUBMISSÃO, humilhação, redução da dignidade da pessoa e obediência cega. Daí, já sabemos as consequências que virão até os tempos atuais.

Além disso, convém ter presente que, tanto naquele tempo como ainda hoje, a relação cabeça-corpo é assimétrica, ou seja, a primazia é da cabeça, da mesma forma como a primazia é de Cristo e não da Igreja. E mais. Apesar do v. 21, não há reciprocidade no restante dos versículos, pois os maridos são convidados a amar e as esposas a temer, respeitar, reverenciar, do verbo grego fobeo. (cf. v. 33. É verdade que esses Códigos de Deveres Domésticos amenizam a situação das esposas, mães e escravos no patriarcado greco-romano. Porém, legitima-se a superioridade dos maridos em relação às esposas como a superioridade de Cristo em relação à Igreja. Justifica-se, teologicamente, a superioridade do pater familiae sobre seus subordinados: esposas, filhos e escravos. Aliás, “família”, do latim famulus, significa escravos domésticos. Família é composta por um patriarca (pater familiae) e seus famulus: esposa, filhos, servos livres e escravos.

Voltando às exigências para os maridos, devemos salientar outro aspecto que não pode passar despercebido. Os oito versículos (vv. 25-33), que apresentam as exortações aos maridos e suas obrigações em relação às mulheres, iniciam por uma advertência: “Maridos, tenham amor a suas esposas como Cristo amou a sua Igreja e se entregou por ela”. Isto deve nos remeter ao gesto do “lava-pés” realizado por Jesus aos seus discípulos (João 13). O amor de Jesus se efetiva no serviço. Para Ele, amar é servir e doar-se! Mais adiante voltaremos a falar sobre a incoerência do texto (vv. 22-24) com a pessoa de Jesus.

Na sequência o texto apresenta os deveres dos maridos em relação às esposas: AMAR COMO A SI MESMO, se entregar, cuidar, zelar, manter uma relação de companheirismo e respeito (“os dois serão uma só carne” – v. 31). Observemos que tudo isto está escrito no texto (vv. 25-33).

Conclusão: Se fizéssemos uma leitura atenta e completa do próprio texto (5,21-33) já poderíamos amenizar muito o seu impacto e consequências negativas nas relações entre maridos e esposas, homens e mulheres. Infelizmente, muitas vezes, lemos um texto bíblico com nossos pré-conceitos, preconceitos e pré-juízos, ou seja, com aquelas ideias e valores (ou contravalores?) que temos em nossas cabeças e em nossas práticas cotidianas. Neste caso, o que pensamos sobre as mulheres e em nossas relações com elas, esposas ou não. Daí, só colhemos prejuízos (consequências negativas) para nossas vidas.

Muitas vezes em nossas leituras bíblicas não lemos o texto por completo, mas somente parte dele, fora do seu contexto geral. E o pior, lemos e ouvimos apenas o que já estamos previamente dispostos a saber e ouvir, ou para confirmar o que já decidimos acatar para nossas vidas.

A leitura minuciosa e atenta do próprio texto (5,21-33) é uma atitude necessária para a leitura de todo texto bíblico. Isto é fundamental, mas ainda é a questão mais simples e superficial, e não nos faz perceber e superar toda a problemática e as contradições dele. Há outras considerações mais profundas a serem feitas, é o que faremos a seguir.

  • Segundo passo: perceber as contradições do texto (5,21-33) com os ensinamentos de Paulo

Para uma pessoa cristã habituada na leitura bíblica, estas contradições já deveriam ter vindo à tona de imediato, pois ela deveria perceber que os gestos, palavras e atitudes de Paulo e de Jesus apontam totalmente noutra direção nas considerações e relações com as mulheres. Contudo, precisamos tornar isto mais evidente a partir dos textos bíblicos e de outras informações extrabíblicas.

Sabemos por evidências históricas que a “Carta” aos Efésios não faz parte das cartas autênticas de Paulo (1Tesalonicenses, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, Romanos, Filemon – escritas entre os anos 50 e 54). Isto se comprova tanto pela diferença de estilo, quanto por certos aspectos do conteúdo, e mais ainda pela impossibilidade cronológica: a morte do apóstolo Paulo em Roma, se dá por volta do ano 65, enquanto esta carta é escrita pelo ano 85.

Contudo, o mais importante é percebermos a diferença de tratamento (personalizado) dado às mulheres e aos escravos, por Paulo nas suas Cartas autênticas, em relação a Ef 5,21-33. E também qual era o lugar das mulheres nas Comunidades Cristãs mais primitivas, fundadas por Paulo e por outros/as Apóstolos/as.

Vejamos a liberdade na relação e a importância dada por Paulo às mulheres e o lugar de destaque ocupado por elas nas primeiras Comunidades Cristãs – LER: Atos 16,11-18; Romanos 16,1-16. Aí encontramos Febe (Diácona), Prisca, Maria, Júnia, Trifena e Trifosa, Pérside, a mãe de Rufo, Júlia, a irmã de Nereu, Olimpas e outras não nomeadas. Mulheres diáconas, comerciante, donas de casa, lideranças nas comunidades e advinhas.

 No pensamento cristão (doutrina) de Paulo não há lugar para uma consideração desigual entre as pessoas: “ao contrário, glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem, primeiro para o judeu, depois para o grego. Porque Deus não faz distinção de pessoas” (Rm 2,10-11); “De fato, todos vocês são filhos de Deus, por meio da fé em Cristo Jesus. Pois todos vocês, que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus. E se vocês são de Cristo, são descendência de Abrahão, herdeiros conforme a promessa” (Gl 3,26-29).

Prossegue ele: “De fato, irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas que a liberdade não sirva de pretexto para a carne. Ao contrário, por meio do amor, ponham-se a serviço uns dos outros” (Gl 5,13). “No entanto, diante do Senhor não existe mulher sem homem, nem homem sem mulher. Pois, se a mulher foi tirada do homem, também o homem nasce da mulher, e tudo vem de Deus” (1Cor 11,11-12).

Vimos que nestes textos Paulo assume igual dignidade entre escravos e livres; homem e mulher; judeu e pagão. Em Cristo todas as barreiras foram rompidas, n’Ele somos um só corpo (1Cor 12,12).

  • Terceiro passo: perceber as contradições do texto (5,21-33) com o anúncio da Boa Nova de Jesus

 A primeira estranheza e contradição, que deveríamos sentir diante do texto Ef 5,22-24, deveria ser mesmo com a pessoa de Jesus de Nazaré. Bastaria relembrar seus gestos, atitudes e palavras em relação às mulheres e aos/às excluídos/as do seu tempo e perceberíamos de imediato a incoerência. Nos evangelhos vemos Jesus conversando, acolhendo e visitando as mulheres – Samaritana, Madalena, Marta e Maria, a presença das mulheres ao pé da cruz, no sepultamento e na Ressurreição. Encontramos até mulheres discípulas, seguindo Jesus: “Depois disso, Jesus percorria cidades e povoados, pregando e anunciando a Boa Notícia do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, e também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doentes: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Suzana e muitas outras, que serviam Jesus com os bens que possuíam” (Lc 8,1-3). Ainda mais, na crucifixão: “Também algumas mulheres estavam lá, olhando de longe. Entre elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago Menor e de Joset, e Salomé (Mc 15,40-41).

A “Carta” aos Efésios afirma, desde o princípio, que a fé cristã tem sua base em Jesus Cristo, insiste que, pela Graça, nós formamos um só corpo: “Pelo sangue de Jesus Cristo, vocês que estavam longe foram trazidos para perto. Jesus Cristo é a nossa paz” (2,13-14). Na sua cruz, Ele derrubou todo muro, eliminou tudo o que nos impede de ser uma nova humanidade enraizada no amor. Portanto, a discriminação, o preconceito e a dominação de uma pessoa sobre a outra são absolutos e, indiscutivelmente, contrários ao anúncio do Evangelho.

  • Quarto passo: o contexto sociocultural das Comunidades cristãs – ano 85 e os “Códigos de Conduta Familiar” ou “Códigos Domésticos”

Este passo exige um pouco mais de estudos bíblicos e extrabíblicos (histórico-cultural), mas é decisivo para compreendermos de vez por que uma exigência (vv. 22-24) tão contraditória com os fundamentos da Fé cristã entrou para a Bíblia e é lida como Palavra de Deus.

Aqui vai uma pequena advertência prévia: podemos afirmar que a Bíblia é Palavra de Deus, mas não podemos nos esquecer de que ela, como tudo que está feito e construído no mundo da cultura, tem a participação humana. Por isso, os textos bíblicos trazem as marcas do seu tempo histórico, do seu lugar geográfico, das relações de trabalho, da economia, da política, dos pretensos valores sociais e religiosos. Enfim, a Bíblia é Palavra de Deus misturada nas palavras humanas. Cabe a nós, pela luz do Espírito e pela leitura comunitária, realizarmos o belo e árduo trabalho de garimpagem, separando, minuciosamente, o metal precioso das diversas impurezas, ou dos elementos secundários. Assim, a leitura bíblica promoverá aquilo que Jesus veio trazer para todas as pessoas: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (João 10,10).

A “Carta” aos Efésios, desde o seu início, nos apresenta Jesus como o Cristo (Salvador), cabeça das coisas celestes e terrestres (“Cristo cósmico” – Ele é tudo em todos) e da Igreja, é o alicerce, a pedra angular (2,20), plenitude de todas as coisas. É por meio d’Ele que veio a salvação, a revelação do Pai (a Palavra da Verdade) e do seu projeto (Reino). Portanto, Ele é o modelo para a vida cristã, toda ação humana tem n’Ele sua referência. A oferta gratuita para remissão dos pecados, da libertação dos escravos para a adoção filial e inclusão deles na família de Deus; a garantia de participação e herança nos bens divinos – redenção, nova vida e vida eterna. A afirmação do senhorio absoluto do Cristo como o Kyrios – Senhor, já soava como uma afronta ao Império Romano!

As Comunidades Cristãs são suspeitas de subversão e também elas começam a sofrer influência da sociedade romana, correndo o risco de aderirem aos seus costumes, muitas vezes opostos à vida cristã. Vejamos uma amostra significativa disto: “Que ninguém, com palavras vazias, engane vocês, pois devido a essas coisas é que vem sobre os desobedientes a ira de Deus. Não se tornem cúmplices deles. De fato, antes vocês eram trevas; agora, porém, são luz no Senhor. Caminhem como filhos da luz. Pois o fruto da luz está em toda bondade, justiça e verdade. Procurem descobrir o que é agradável ao Senhor. E não participem das obras estéreis das trevas. Ao contrário, denunciem tais obras. Porque é até vergonhoso dizer o que eles fazem às escondidas.” (Ef 5,6-14).

Era uma época de muitas migrações, insegurança, violência. As Comunidades Cristãs encontravam muita dificuldade para viver relações de comunhão em meio ao medo, incerteza e busca de milagres. A instabilidade dessa época provocava muita circulação de pessoas, que tinham diferentes experiências religiosas e que falavam idiomas distintos.

Mesmo assim, na contramão do Império Romano, as pequenas Comunidades Cristãs viviam e anunciavam a boa notícia de que os escravos e escravas tinham direitos iguais a todas as pessoas. O fato de que escravos e mulheres participavam com direitos iguais nas comunidades, despertou suspeitas na sociedade dominante da época. A dominação imperial se avolumava e aperfeiçoava seus modos de explorar e perseguir, sob o governo do imperador Domiciano (81 a 96 d.C.), fazendo vítimas em número crescente, dentre elas, os cristãos.

Pode ser dessa época, ou com essa intenção, que alguém realizou a inserção do capítulo 5 na “Carta” aos Efésios. Esse capítulo mantém a pirâmide social e religiosa do Império Romano. Uma pirâmide que se reproduz na casa patriarcal, assegurada em sua estrutura pelos Códigos Domésticos que, ao garantir o direito do pater familiae (patriarca), insistem na submissão como ética cristã: “Submetei-vos!” (Ef 5,21) “Mulheres, sejam submissas aos seus maridos” […] (Ef 5,22-24); “Servos, obedecei com temor e tremor aos seus senhores, como a Cristo” (6,5).

Os Códigos Domésticos ou Familiares estão presentes não apenas na “Carta” aos Efésios, são encontrados também na Carta aos Colossenses (Cl 3,18–4,1) e na Primeira Carta de Pedro (1Pd 3,1-7). De maneira ainda mais preconceituosa, eles estão presentes nas Cartas Pastorais, sobretudo na Primeira a Timóteo (2,9-15). Essa constatação nos dá conta do processo de patriarcalização das comunidades cristãs nas Cartas Pastorais, escritas por volta do ano 115 d.C.

A inclusão dos Códigos Domésticos deve ter sido uma estratégia para que as Comunidades Cristãs fossem mais aceitas na sociedade estruturada de maneira seletiva e excludente do seu tempo (5,6-8; Cl 3,22). Ou, o que pode ter sido pior: aos poucos as Comunidades Cristãs foram aceitando, dentro do seu seio, o modo de ser e as regras de conduta do “mundo” no sentido joanino (a ideologia da sociedade dominante). (Ler João 17,14-19).

Será que valeu à pena esta aceitação? Será que faltou vigilância crítica e prudência das Comunidades? Ontem e hoje? Se, por um lado, esta estratégia de adaptar o modo de viver em comunidade ao modelo patriarcal consegue diminuir as suspeitas em relação às comunidades, por outro, com ela perdemos o melhor que tínhamos para oferecer ao mundo como igreja: o jeito de Jesus. Perdemos o essencial de nossa missão: ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-16).

5- CONSIDERAÇÕES sobre o trecho Ef 6,1-9

Este trecho, tratando da obediência dos filhos/as aos pais e do/as escravo/as aos seus senhores, também faz parte dos Códigos Domésticos patriarcal e, como tal, merece as mesmas considerações críticas do trecho anterior.

Apenas para ilustrarmos suas contradições, mencionamos, para a relação pais e filhos/as, a dita parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32). Melhor seria chamá-la de parábola do Pai/Mãe misericordioso/a. Esta deveria ser a referência para as relações familiares pautadas pela liberdade, amor, misericórdia, perdão e alegria!

Quanto à relação entre escravos e senhores, o princípio fundamental é: NÃO HAJA ESCRAVOS ENTRE OS CRISTÃOS! Paulo é muito enfático nesta questão: “De fato, todos vocês são filhos de Deus, por meio da fé em Cristo Jesus. Pois todos vocês, que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus. E se vocês são de Cristo, são descendência de Abrahão, herdeiros conforme a promessa” (Gl 3,26-29).

Paulo assume igual dignidade entre escravos e livres; homem e mulher; judeu e pagão. Em Cristo todas as barreiras foram rompidas, n’Ele somos um só corpo (1Cor 12,12). “Você era escravo quando foi chamado? Não se preocupe com isso. Mas, se você puder tornar-se livre, é melhor aproveitar. Pois o escravo, chamado pelo Senhor, é liberto no Senhor. Assim também o livre, quando chamado, é escravo de Cristo. Vocês foram adquiridos por preço alto. Não se tornem escravos dos homens” (1Cor 7,21-23). E no “bilhete” a Filêmon ele considera o escravo Onésimo como irmão e recomenda ao seu amigo que o receba: “Não mais como escravo, e sim muito mais do que escravo, como irmão amado, especialmente por mim e tanto mais por você, segundo a carne e segundo o Senhor. Portanto, se você me considera amigo, receba-o como a mim mesmo.” (Fl 1,16-17).

Seria desnecessário fazer qualquer alusão a Jesus em relação à mais absoluta incongruência e discordância com a escravidão. Isto fica confirmado no seu discurso na Sinagoga de Nazaré. (Ler Lucas 4,14-21).

 Tanto por Paulo, quanto por Jesus, somos levados a rever com seriedade as relações de trabalho – patrão/a x empregado/a – entre cristãos/ãs e na vida das Comunidades Cristãs de hoje.

  • CONSEQUÊNCIAS de uma leitura enviesada do texto Ef 5,21-33

 Ao longo da nossa análise e reflexão já acenamos para algumas consequências negativas desta leitura deturpada.

Apenas para recordar: imaginemos o impacto emocional negativo e humilhante nas mulheres, muitas vezes em seus casamentos, ouvindo: “As mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor, pois o homem é cabeça da mulher, como também Cristo é cabeça da Igreja, ele que é o salvador do corpo. E como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo aos maridos” (vv. 22-24). Por outro lado, os homens se sentindo muito confortáveis e respaldados em seu provável espírito patriarcal e machista. E aqui a coleção de gracejos e piadas de mau gosto contribui imensamente para fomentar o dano.

Qual a relação conjugal e familiar possível daí para frente?

Vimos que até pouco mais da metade do primeiro século, as mulheres, tanto quanto os homens, ocupavam funções de destaque na organização, no ensino e na liderança das Comunidades Cristãs. Já para o final do primeiro século, com a adesão aos “Códigos de Conduta Familiar” patriarcal, fruto da cultura romana, as mulheres vão sendo, gradativamente, silenciadas nas Comunidades Cristãs. A partir daí, cada vez mais, teremos uma Igreja masculinizada, hierarquizada e arredia às mulheres. Elas serão, além de silenciadas, perseguidas e reprimidas pela hierarquia eclesiástica. Os argumentos para tais atitudes são os mais absurdos e incoerentes possíveis, contra o mínimo de senso de humanidade e menos ainda de vida cristã.

Hoje as mulheres continuam sendo a maioria absoluta nas Igrejas. São elas que assumem a maioria dos serviços pastorais, desde o zelo pelos templos, os preparativos das celebrações litúrgicas (nas quais elas ocupam funções secundárias, quando não são excluídas), na Catequese, na visita aos enfermos, nos serviços pesados das cozinhas nos dias de Festas e promoções diversas. Mas quase nunca as lideranças (coordenadores, diáconos, padres, pastores) lhes “dão ouvido”, nem a palavra e nem o poder de decisão.

O que Paulo e Jesus diriam dessas atitudes e práticas dentro das Igrejas?

O que podemos fazer para mudar esta situação?

Assim como Javé – Deus libertador – viu e ouviu a aflição e o clamor do seu povo sob a opressão dos egípcios e desceu para libertá-lo (Ex 3,7-10), Ele está vendo e ouvindo esta onda diabólica de violência brutal contra as mulheres (assédio sexual, estupro, feminicídio) e contra as crianças (abuso sexual, infanticídio). Não é estranho supor que tudo isto poderá ter suas raízes neste passado distante que se prolongou até os tempos atuais! Alguém já disse: todo mal torna-se ainda maior ou pior quando realizado em nome de Deus, ou a partir daquilo que se entende como sendo a vontade de Deus.

 Tivemos um passado cultural marcado pela Cristandade, durante o qual a sociedade toda parecia ser cristã, trajava a roupagem religiosa cristã, a moral e os princípios religiosos transbordavam das Igrejas para a Sociedade. Por isso, também na sociedade laica, na vida social, empresarial e política, encontramos o mesmo tratamento e consideração de submissão dado às mulheres. Este modo de pensar e agir nas relações homem-mulher se entranhou em nosso tecido cultural de tal modo que é a submissão das mulheres que faz os homens pensarem que são donos delas. Muitas mulheres não saem dos casamentos porque acreditam que não têm forças e não conseguirão viver sozinhas. As Igrejas foram e continuam sendo cúmplices das violências contra as mulheres. Foram séculos dizendo aos homens que cabia a eles educar suas mulheres e dizendo às mulheres que deveriam obedecer aos seus maridos. Hoje, temos mulheres que sofrem caladas porque são obedientes e muitas delas já morreram porque não suportaram o silêncio e resolveram tentar romper com a escravidão doméstica.

Será que reconhecemos a luta das mulheres pela igualdade de Direitos em todos os espaços sociais?

CONCLUSÃO

Como é impossível, em qualquer circunstância celebrativa e até pastoral, realizar uma reflexão desta natureza, o mais recomendável e prudente é mesmo evitar a leitura de textos como Ef 5,21-33, assim como outros:

Josué 5,21: “E julgaram condenado ao anátema tudo o que existia dentro da cidade, passando ao fio da espada homens e mulheres, jovens e velhos, bois, animais pequenos e jumentos”;

Salmo 137,8-9: Ó devastadora capital da Babilônia, feliz quem retribuir a você com o mesmo castigo com que fomos castigados. Feliz quem agarrar e fizer em pedaços seus nenês contra a rocha”;

Joel 2,11: “Javé faz ouvir sua voz à frente de seu exército. Seus batalhões são os mais numerosos, e os encarregados de executar a ordem de Deus são valentes. Grandioso e terrível é o Dia de Javé! Quem poderá suportá-lo?”.

Este nunca foi o Deus (Abba-Pai/Mãe) revelado na pessoa de Jesus! (Ler João 14,8-14).

Alguém poderia objetar dizendo: mas está na Bíblia! Sim, já falamos da relação e implicação entre Palavra de Deus e palavra humana.

É preciso procurar ler e refletir a Bíblia de forma comunitária, auxiliados por materiais e pessoas confiáveis. O processo de compreensão da Bíblia é lento e exigente, mas está ao alcance de todas as pessoas que se abrem ao Espírito da Vida e do Amor. É necessário persistência e perseverança, aos poucos a luz da Palavra vai brilhando, os caminhos se iluminando e se abrindo para a Boa Notícia do Reino.

Não podemos aceitar o fatalismo (força do destino, vontade de Deus…), ou a naturalização (tal coisa é assim mesmo, sempre foi assim…) das realidades humanas, sociais e culturais. Todas elas foram construções, bem ou mal pensadas e planejadas, para o bem ou para o mal da vida humana, elas estão aí. Cabe a cada geração avaliá-las, revê-las e reconstruí-las em conformidade com os sinais dos novos tempos. Aliás, Jesus nos advertiu sobre a importância de sabermos “interpretar os sinais dos tempos”. (Mt 5,1-4). E o critério fundamental há de ser sempre a promoção da Vida, da Justiça e a defesa da dignidade de todo ser humano. Só encontraremos o caminho para isto quando nos dispusermos a encarar com honestidade nossos desafios, submetê-los a uma avaliação crítica comunitária e realizarmos juntos as mudanças necessárias. A atitude de rigorosa vigilância, a doce abertura ao sopro do Espírito e a atenção aos apelos da Vida são os verdadeiros antídotos e medicamentos contra todos estes males.

  • ÚLTIMA PALAVRA…

As inquietações iniciais e as descobertas ao longo do caminho, me levaram mais longe do que imaginava. O escrito ficou muito maior do que pretendia. Que pena! Mas o assunto foi provocativo e desafiador. Fui seduzido e me deixei seduzir!

Não inventei a roda. Quase tudo que escrevi está escrito por aí. Apenas simplifiquei, facilitei e organizei o que li e ouvi de tantas pessoas. Usei e abusei do livreto (on-line) da nossa querida Irmã Mercedes Lopes – “Carta aos Efésios: Igrejas articuladas em esperança solidária”, dos textos e dos estudos com o Pastor metodista Western Clay Peixoto e do texto-base do CEBI-MG, sobretudo o capítulo da nossa querida Lúcia Diniz – “Carta aos Efésios: relações humanas baseadas no amor”.

Por não se tratar de um trabalho acadêmico ou científico, omiti, com consciência e responsabilidade, as citações às referidas obras, muitas delas estão literalmente transcritas neste texto. Peço desculpas aos/às autores/as, a eles/elas meus agradecimentos e espero ter sido fiel aos seus escritos.

Ainda contei com a colaboração indireta de tantos/as outros/as companheiros/as de caminhada com o povo e com a Palavra. Em especial, da minha cumade Olenir, do meu cumpade Osmar e do irmão do sul, Ildo Bohn Gass. Tudo foi construído em mutirão.

A quem se aventurar nesta intrigante e provocativa leitura, bom proveito. Por tudo e por todos/as, GRATIDÃO.

Com carinho e estima,

Zé do Cerrado: Se a vida me deixa incomodado, cada vez mais por ela me sinto apaixonado. Viva a Vida!

(Se alguém desejar estender a prosa, pode me procurar – José Horácio Santana – e-mail: jhoraciouber@gmail.com; zap: (34) 9.9663-7332)

Créditos da Foto: Rovena Rosa  – Agência Brasil

Equipe de Comunicação do CEBI/MG.