A dimensão erótica do furor de Deus e “a rainha do céu”: “o meu furor e o meu ciúme”

A dimensão erótica do furor de Deus e “a rainha do céu”: “o meu furor e o meu ciúme”
19 de setembro de 2023 CEBI MG

A dimensão erótica do furor de Deus e “a rainha do céu”: “o meu furor e o meu ciúme” – Por Sandro Galazzi e Ana Galazzi[1]

O biblista Sandro Galazzi

Resumo:

Justificar e explicar a história usando a alegoria do ciúme furioso e devastador de Deus é uma maneira de fazer teologia, de “falar de Deus”. É uma opção teológica.

A imagem que sobressai, filtrada por estas páginas é uma imagem nítida de um macho possessivo e vingador que considera a coisa mais tranqüila e legítima do mundo, destruir a mulher que era “sua”, mas que, por não se sentir saciada, o traiu e o humilhou correndo atrás de corpos mais jovens, mais fortes e melhor equipados.

A relação homem/mulher, quando vivida desta forma, acaba não sendo muito diferente da relação pai/filho(a), patrão/empregado, dominador/súdito: trata-se somente de uma relação de posse-poder!

 

A profecia, várias vezes, usa as imagens da relação sexual para descrever a relação entre Deus e seu povo, para identificar e explicar os sentimentos – sobretudo de Deus – e os fatos da história do povo.

Neste trabalho gostaríamos de nos deter em algumas destas páginas e refletir sobre o erotismo como uma forma de linguagem teológica, capaz de revelar quem é o nosso Deus e o que é que ele quer.

Vamos olhar os textos na perspectiva das relações mulher – homem, com suas componentes sexuais e eróticas.

É evidente que, por se tratar de alegorias, a mensagem teológica deve ser buscada por trás das palavras, no fundo escondido e não na superfície aparente.

Não podemos esquecer que atrás destas “mulheres” estão cidades, projetos políticos, momentos da história.

É claro que atrás dos “amantes” estão outras cidades, outras nações, outros projetos políticos.

Prostituição é idolatria, é opressão do povo, é aliança política.

Por isso não podemos simplificar, reduzir e fazer da chave sexo-erótica a única chave de leitura. É indiscutível, porém, que a linguagem sexuada ajuda a identificar qual a imagem de Deus que está presente na cabeça e no coração do profeta.

É o que ensaiamos.

Uma coisa deve ser dita de antemão: em todos os textos que trabalharemos, Deus sempre assume o papel do homem/macho e Jerusalém e/ou Samaria o da mulher/fêmea. Isto quer dizer que a relação dos dois será sempre vista, analisada e julgada sob o ponto de vista do homem/macho.

A mulher quase nunca vai se expressar, vai ter pouco ou nenhum espaço para ela. Ela vai ter que escutar, calada, as reprimendas, os apelos e as sentenças do homem. Ele e só ele vai decidir qual será o futuro da mulher.

 

Ezequiel 16

 

Vamos começar por Ezequiel 16 que nos apresenta a alegoria da esposa infiel. De um lado está o homem/deus, do outro a mulher/Jerusalém.

A iniciativa do discurso que mais parece um libelo de acusação é sempre do homem. A mulher nunca diz nada: nem no fim. O último versículo sublinha com vigor:

“A fim de que te lembres e te cubras de vergonha e na tua humilhação já não tenha disposição de falar, quando eu tiver perdoado tudo quanto fizeste” (Ez 16,63)

Por sua origem a mulher nos é apresentada como “bastarda”, fruto de Canaã, amorreus e heteus (Ez 16, 3), fruto de prostituição (?). Abandonada por todos desde o nascimento, é jogada fora sem compaixão a estrebuchar no sangue (Ez 16,4-6).

O homem, evidentemente já adulto, “passa” e sua palavra garante a vida da menina recém-nascida (6). Esta descrição, de certa maneira, põe em destaque o papel paterno do homem e, no resto do texto, fará com que permaneça, como pano de fundo, a ambigüidade do papel do homem, às vezes esposo, às vezes pai.

A menina cresce e vira moça bonita. O texto nos apresenta seu corpo sexuado: nua, seios firmes, cabelos longos, pronta para os amores (Ez 16, 7-8).

O homem “passa” e com seu manto cobre a nudez (8). Este é o único momento em que se deixa subentender um gesto sexual por parte do homem. E na menção posterior aos filhos gerados.

Juramento e aliança (casamento?) são iniciativa do homem, aqui explicitamente identificado com o “Senhor” Iahweh (esta, aliás, é a maneira com que Ezequiel costuma falar de Deus).

“Foste minha”.

A moça passa a ser do “senhor”/adonai.

A iniciativa continua sendo toda do homem: ele banha, purifica, unge, veste a mulher, lhe dá ornamentos preciosos e comida especial: te tratei como uma rainha, nunca te faltou nada! (Ez 16,9-13).

“Eras perfeita por causa da minha glória” (Ez 16,14)

Novamente parecem confundir-se os papeis de pai e de marido?

Em nenhum momento mais se alude a qualquer momento sexual e erótico entre os dois. É espontâneo perguntar: qual o peso da idade neste relacionamento?

A mulher, porém, não reconhece esta posse e decide pertencer a outro, seja quem for.

A iniciativa agora é dela. Sua iniciativa é a busca por outros amantes.

Neste contexto, as imagens eróticas multiplicam-se, a linguagem sexual se faz explícita com o claro objetivo de envergonhar a mulher.

Te prostituíste… derramaste tuas prostituições… profanaste tua beleza.. abriste tuas pernas a todos que passavam… insaciável… despudorada… correste atrás dos vizinhos de membros grandes… adúltera que acolhe estranhos… lascívia exagerada… descobriste tua nudez com teus amantes com os quais te deleitastes (passim).

No lugar de receber presentes, esta mulher presenteia seus amantes, reduzidos, assim, a simples gigolôs sustentados por esta mulher insaciável.

As palavras prostituição, prostituta e prostituir-se repetem-se inúmeras vezes, feitos refrãos ensurdecedores e acusadores, pedras jogadas para executar as adúlteras.

O castigo terá a mesma densidade, uma espécie de “contrapasso” dantesco.

“Descobrirei as tuas nudezas diante de teus amantes para que todos as vejam” (Ez 16,37)

Como as adúlteras, ela será exposta à vergonha pública e será apedrejada. O gozo do desejo será substituído pela trágica experiência da violação.

O sexo foi instrumento de pecado; o sexo será instrumento de castigo.

Nua ficará como no tempo de sua mocidade, como quando tudo começou antes da passagem do Senhor.

A traição, a busca pela satisfação do desejo erótico, é uma espécie de tara hereditária, de fator genético de todas as mulheres. A mãe hetéia foi assim: teve nojo do marido e dos filhos. As irmãs todas – Samaria e Sodoma – também foram assim: tiveram nojo dos maridos e dos filhos.

Jerusalém, porém, foi pior, pois ela conheceu de perto o favor do Senhor e o renegou em suas prostituições.

”Porque você se esqueceu do tempo de sua mocidade” (Ez 16,22.43)

De certa maneira é para lá que o homem quer levar a mulher, para quando era criança. Parece continuar irresolvida a ambígua relação do homem “pai/marido” com a mulher; continua mais pai do que marido.

Erotismo só com os “amantes”, só fora de casa, nos lugares altos, debaixo dos terebintos, nas esquinas das ruas e das praças.

Dentro de casa a relação deixa de ser erótico-corporal para ser uma relação de gratidão, de dependência, mais adequada a uma criança dependente e agradecida assim como a uma mulher/esposa submissa e feliz com tudo que o homem lhe traz.

O castigo, nesta perspectiva, não pode ser outro.

Destruição… vergonha… opróbrio… abandono dos amantes.

Tudo isso misturado com o “perdão”, um perdão motivado pelo fato de que o Senhor não esquece os dias da mocidade da mulher:

“Eu me lembrarei da minha aliança, feita contigo nos dias de tua mocidade” (Ez 16,60).

Atitude até compreensível por parte de um pai, insuportável, porém, num amante.

Por isso a “conversão” da mulher terá que ser marcada pela vergonha, pelo reconhecimento de seu opróbrio e pelo silêncio.

Perdão em troca de submissão e de silêncio. O sexo sequer reaparece. Não interessa. Nada iria mudar se no lugar da mulher estivéssemos falando de um homem.

O homem, ao produzir esta página, deixa transparecer seus dois atávicos complexos de macho: o medo de não dar conta de satisfazer sexualmente a mulher, o complexo da impotência e o complexo de castração, o medo de ter um pênis pequeno, insignificante, ridículo, quando comparado com o “membro grande de teus amantes”.

Quando é o homem que trai a mulher, quando é ele que vai – e como vai – com  “outras”, ele está afirmando, com o tácito consenso da sociedade, sua masculinidade.

Se for a mulher, porém, que procura “outros” ela está se prostituindo.

Ao chamá-la de adúltera e prostituta o homem satisfaz seus complexos.

A traição só pode ser aceita na sociedade machista como sendo culpa da mulher. A mulher busca outros amantes porque ela é “insaciável” e ingrata.

A traição da mulher nunca pode ser sinal de deficiência masculina.

 

Ezequiel 23

 

O próprio Ezequiel volta à metáfora da traição alguns capítulos depois. No cap. 23, a alegoria de Oolá/Samaria e Oolibá/Jerusalém, as duas meretrizes, recebe um destaque tão grande quanto o da esposa infiel do cap.16.

Desta vez, porém, não se narra o que o esposo fez para elas. Só se diz que “eram minhas”. Em nenhum momento aparece a ação do homem, antes da traição.

Oolá (ela tem uma tenda) e Oolibá (minha tenda nela) são prostitutas desde a mocidade, desde o Egito.

Desde o começo só fizeram se prostituir.

Novamente as imagens são cruas:

“foram apertados seus peitos e apalpados os seios de sua virgindade” (Ez 23,3.8.,21)

Três vezes repete-se este refrão que faz iniciar a fornicação nos dias da mocidade delas.

Poderíamos entender que, quando ainda virgens, as duas já estavam se entregando à luxúria? Desaparece, aqui, o tempo da fidelidade que, mesmo breve, foi colocado em destaque no cap. 16.

“Ela multiplicou as suas fornicações fazendo reviver os dias de sua mocidade, quando se prostituía na terra do Egito” (Ez 23,19)

As duas têm praticamente a mesma conduta. Sua ação, também, é marcada pelo “desejo insaciável”. O termo ‘agav’ só é usado neste capítulo de Ezequiel e em Jr 4,30 num contesto parecido. A vulgata vai traduzir com “insanavit” – ficou louca.

As duas perderam a cabeça atrás de seus amantes e com eles fornicaram… cometeram suas devassidões… descobriram as nudezas delas…

Tudo isso porque os amantes eram cavaleiros bonitos, jovens, guerreiros valentes e bem vestidos (Ez 23,6.12.15.23) e por eles as duas mulheres se inflamaram. Volta mais uma vez o complexo de castração do macho traído:

“Inflamou-se pelos seus amantes cujos membros são como de jumento e cujo fluxo é como fluxo de cavalos” (Ez 23,20).

Mais uma vez é evidenciada a culpa da mulher. Culpa por desejar libidinosamente o corpo forte e jovem de seus amantes.

Mais uma vez o homem deixa transparecer sua raiva por não conseguir competir contra tamanha concorrência.

“Por amor deles te banhaste, coloriste os olhos, e te ornaste de enfeites; e te assentastes num leito suntuoso, diante de uma mesa preparada com o meu incenso e o meu óleo. Com ela se ouvia a voz de muita gente que folgava, de beberrões trazidos do deserto…” (Ez 23,40-42).

A ambigüidade pai/marido do cap. 16, desapareceu.

Desta vez sobrou a raiva do amante traído e, sobretudo, humilhado na sua masculinidade.

“Porque te esqueceste de mim e me atiraste para trás das costas, arcarás com tuas fornicações e prostituições” (Ez 23,35)

O castigo é inevitável, tão inevitável que já não há mais lugar para futuros arrependimentos. Não mais se fale em perdão. O contexto é o do julgamento condenatório (Ez 23,36).

As duas mulheres serão violentadas, seu rosto será devastado, suas orelhas cortadas, seus peitos rasgados.

A violência contra o corpo da mulher é assim justificada: usou o corpo para fornicar, o corpo será castigado com violência. Nada de mais truculento e, ao mesmo tempo, nada de mais simples, de mais “legítimo”.

O corpo violado e desfigurado não servirá mais para a fornicação. Os amantes de ontem serão os violentos de hoje.

Justificar a violência é o fruto mais iníquo da lógica machista. O macho assim alcançará sua satisfação. Ninguém mais desejará sua desfigurada mulher.

Mesmo que ela continue cheia de desejo, não haverá quem a satisfaça mais!

Todas as mulheres poderão ver o que se faz com a prostituta e aprenderão.

“Assim todas as mulheres receberão uma advertência para que não ajam de acordo com a vossa devassidão” (Ez 23,48).

É o homem falando para todas as mulheres. Afinal todas elas são iguais.

 

O erotismo – ou a negação dele – como lugar teológico

 

Olhamos estes textos na perspectiva das relações mulher – homem, com suas componentes sexuais e eróticas.

Como dissemos no começo, por se tratar de uma alegoria, a mensagem teológica deve ser buscada por trás das palavras. A chave sexual-erótica não é suficiente para compreender o alcance teológico do texto.

É indiscutível, porém, que a linguagem sexuada ajuda a identificar qual a imagem de Deus que está presente na cabeça e no coração do profeta.

Justificar e explicar a história usando a alegoria do ciúme furioso e devastador de Deus é uma maneira de fazer teologia, de “falar de Deus”. É uma opção teológica.

A imagem que sobressai, filtrada por estas páginas é a imagem nítida de um macho possessivo e vingador que considera a coisa mais normal e legítima do mundo, destruir a mulher que era “sua”, mas que, por não se sentir saciada, o traiu e o humilhou correndo atrás de corpos mais jovens, mais fortes e melhor equipados.

A relação homem/mulher, quando conduzida desta forma, acaba não sendo muito diferente da relação pai/filho(a), patrão/empregado(a), dominador/súdito: é uma relação de posse-poder!.

E quando, no fim da história, aparecerá o perdão por parte do homem/deus, isso servirá para despertar na mulher sentimentos contraditórios: de gratidão pelo agir magnânimo do homem/deus e de vergonha pelo seu próprio agir “erótico” ou, como dirá Ezequiel, pelas suas “abominações”.

Nós simples seres humanos, sabemos que estes dois sentimentos dificilmente vão poder garantir uma relação de amor verdadeira e duradoura. Mais cedo ou mais tarde, vai arrebentar de novo.

Aparece, assim, a experiência teológica de um monoteísmo sisudo e assustador que não admite alternativas, sincretismos, convivências, ecumenismos.

Na mesma hora, porém, em que este monoteísmo exige sacrifício e dedicação exclusiva, exige também dependência e submissão. Neste tipo de relação não há espaço para o erótico. Pode haver lugar para o ato sexual, mas não para a sexualidade. O homem é o referencial final, a mulher lhe deve reconhecimento e fidelidade.

Este mesmo deus/macho que exige fidelidade total é um deus/macho cheio de complexos, de frustrações, de invejas.

O inimigo deste tipo de monoteísmo que se constrói sobre o sacrifício, é o “desejo”. A busca do desejo, a satisfação da paixão, o descontrole sensual insaciável devem ser reservados ao prostíbulo, não cabem dentro da casa. O que o homem busca numa prostituta não pode concedê-lo a uma esposa. Seria estimular o desejo, a vontade e, por isso, o confronto. É o desejo que impele a olhar, a procurar, a não se contentar e, com isso, a fazer história.

Este homem/deus nunca parece estar precisando da mulher, do corpo da mulher, da mulher como mulher, da mulher capaz de uma linguagem erótica, sensual, capaz de gozar e de fazer gozar. Uma mulher assim só tem lugar fora da casa, no prostíbulo ou na alcova dos amantes.

Um monoteísmo assim não convive com a mulher. Não tem lugar para ela, a não ser que ela passe por um longo caminho de auto-censura e de sacrifício onde aprenda a não desejar, a refrear suas paixões.

No lugar do desejo, tem que ter gratidão e reconhecimento. Assim este deus/macho não terá concorrentes, não sofrerá comparações.

O melhor relacionamento será um relacionamento assexuado, sem erotismo, sem vida.

Talvez seja em decorrência disso que o templo de Jerusalém reservou os atos de culto exclusivamente aos homens. As mulheres sequer eram espectadoras dos mesmos.

 

Outras experiências de relacionamento sexual

 

A multifacetária realidade dos escritos proféticos nos aponta outras experiências de relacionamento.

O texto de Jeremias, por exemplo, mantém globalmente o padrão de Ezequiel.

O discurso condenatório contra as infidelidades e as prostituições da mulher continua o mesmo: o “desejo insaciável” dela é a causa de todas as transgressões. A antiga “noiva” (2,2) que, cheia do carinho e do amor da juventude, seguia seu noivo pelo deserto, transformou-se, agora, em:

“Uma camela saltitante que cruza seus caminhos,

uma jumenta selvagem, acostumada ao deserto,

que, no ardor de seu cio sorve o vento.

Quem a impedirá de satisfazer seu desejo?

Os que a procuram não têm de fatigar-se:

No mês dela a acharão!” (Jr 2,23-24)

Ela decidiu que é inútil atender às advertências e afirma, consciente de sua escolha: “Amo os estranhos e atrás deles irei” (Jr 2,25). Por isso ela se sentava nos caminhos

“esperando por eles como o árabo no deserto e assim contaminaste a terra com tuas fornicações e com as tuas maldades” (Jr 3,2).

Por isso ela se veste de escarlate, adorna-se com enfeites de ouro e alarga os olhos com pinturas e se faz extremamente linda, pronta para seus amantes (Jr 4,30).

A atitude de Deus, diante de tudo isto, porém, não tem os tons de repúdio e de castigo que encontramos em Ezequiel. Talvez por não ter ainda acontecido a invasão de Jerusalém, o profeta consegue enxergar uma luzinha de esperança.

As ameaças de castigo entremeiam-se com as súplicas para que ela volte para sua casa. O homem/deus está pronto para as duas coisas: repudiar a mulher ou recebê-la de volta.

As palavras dele estão, também, carregadas de paixão. Não é um juiz que fala sentenciando, é um homem que argumenta, se desespera com o abandono, busca o reencontro, sofre imensamente com a possibilidade do castigo.

“Minhas entranhas! Minhas entranhas!

Devo me contorcer!

Paredes do meu coração!

Meu coração se perturba em mim!” (Jr 4,19)[2]

O passado não é jogado na cara da mulher para provocar gratidão e reconhecimento. Ele é usado como sinal da atitude permanente do homem que, contradizendo o costume comum, continua mantendo a porta aberta para a mulher que foi repudiada (Jr 3,1).

Volta renegada Israel

Não farei cair sobre vós a minha ira,

Porque sou misericordioso,

Não guardo rancor para sempre” (Jr 3,12)

Voltem filhos rebeldes,

Eu sou o vosso marido/ba’al” (Jr 3,14).

Voltem filhos transviados

eu curarei suas apostasias” (Jr 3,22)

“Se voltares Israel,

volta para mim” (Jr 4,1)

O verbo xuv/voltar, converter-se, repete-se com insistência. A mesma mão que irada castiga, estende-se suplicante em busca de reconciliação. A mesma boca que profere ameaça, promete o perdão e o reencontro.

Esta dinâmica permanente e aparentemente contraditória é o que permite a relação. Os dois se necessitam. O homem/deus, também, é um amante:

“Como uma mulher trai o seu amante,

assim vós me traíste, casa de Israel” (Jr 3,20)

Daí nasce a possibilidade do diálogo. A mulher, sempre e para sempre calada em Ezequiel, aqui fala.

Às vezes, para insistir em proclamar sua liberdade de ir atrás de seus amantes:

“É inútil! Eu amos os estrangeiros,

atrás deles eu quero ir” (Jr 2,25.31)

às vezes, para considerar a proposta da volta:

“Eis que voltamos a ti,

Pois tu é Iahweh nosso Deus” (Jr 3,22; 3,4)

às vezes, para se justificar:

“Eu não me contaminei

nunca fui atrás dos ba’ales” (Jr 2,23.35)

às vezes, até para gritar por socorro:

“No tempo da angústia dizem:

levanta-te e salva-nos” (Jr 2,27;4,31)

A imagem teológica de Deus, filtrada por estas páginas é diferente da de Ezequiel.  Os fatos podem até ser os mesmos, mas o coração muda.

Em destaque já não está mais a honra negada que o homem precisa vingar. Aqui é o desespero do amante que vê a mulher se afastar e ir para a destruição.

 

Jeremias está, assim, mais perto de Oséias, cujo Deus, também, não tem receio de gritar:

“Meu coração se contorce dentro de mim,

minhas entranhas comovem-se” (Os 11,8)

É verdade que neste texto fala-se do coração do pai e não do homem/esposo, mas sabemos quanto a experiência de Oséias está marcada por estes sentimentos fortes.

O homem/deus de Oséias é sempre capaz de olhar para a mulher/povo com carinho e desejo.

Sim, no capítulo 2, o desejo do encontro, da resposta, da posse recíproca se sobrepõe com força ao momento da ira, do julgamento e da condenação.

O homem/deus de Oséias superou todos os seus complexos maritais e machistas. Ele se dispõe, decididamente a tomar a iniciativa de um re-encontro carregado de sexualidade e de erotismo.

Ele vai “competir” com os amantes na busca da reconquista da mulher. Os amantes não saberão satisfazer a mulher:

“perseguirá seus amantes, sem os alcançar,

vai procura-los, mas não os achará

e dirá: quero voltar ao meu primeiro homem

pois eu era mais feliz antes do que agora” (Os 2,9)

A iniciativa do encontro sexual é explicitamente de Deus.

“Eis que vou seduzi-la,

levá-la ao deserto

e falar-lhe ao coração” (Os 2,16)

Seduzir: trata-se do gesto claro de quem toma para si uma moça virgem e, por isso, será obrigado a pagar o dote (Ex 22,15). No deserto – midbar/longe da palavra – a sedução pode ser consumada na intimidade, sem testemunhas e a palavra do homem poderá ressoar ao coração da mulher. É o mais puro erotismo o encontro do corpo e do coração dos dois amantes.

O homem/deus tomará a iniciativa e casará com ela (Os 2,21). Como o verbo seduzir, assim o verbo desposar só é usado no caso de moça virgem.

O passado da mulher é cancelado. A história pode recomeçar: nem esposa, nem prostituta. Uma moça com que recomeçar a viver: no direito e na justiça e, sobretudo no amor e com as entranhas.

As juras de fidelidade são do homem.

“Eu te desposarei a mim na fidelidade

e conhecerás a Iahweh” (Os 2,22)

Chegamos ao oposto de Ezequiel. É toda outra teologia, toda outra maneira de “falar de Deus”.

Para Ezequiel o “conhecimento de Iahweh” vinha através do castigo (Ez 23,49) ou, na melhor das hipóteses, do perdão concedido para nossa vergonha (Ez 16,62).

Agora o conhecimento vem pelo encontro carinhoso e entranhado dos dois. Com sutileza Oséias usa o termo “conhecer” com o acusativo que, nos textos bíblicos, costuma ter muitas vezes um sentido sexual. Não se trata de conhecer quem é Iahweh, mas de conhecer Iahweh: de amá-lo, de possuí-lo e ser possuída.

Para que isto aconteça é preciso que a mulher descubra no homem/deus seu amante e o queira como amante. Este é o fruto da sedução e da conversa no deserto:

“Ali ela responderá como nos dias de sua juventude,

Como no dia em que subiu da terra do Egito.

Acontecerá naquele dia, (…)

Que me chamarás “meu homem”,

E não mais me chamarás “meu marido/ba’al”.

Afastarei de seus lábios os nomes dos ba’ales (…)” (Os 2,17-18)

O casamento só tem sentido como fidelidade a este projeto de casa sem senhores, sem dominadores, sem submissão, mas fruto da busca constante destes amantes que se desejam e se conhecem.

Esta “resposta” da mulher à palavra falada no deserto ao seu coração é o começo da vida. Os ba’ales deixam, até, de ser inimigos, de ser concorrentes. Com eles, também, é possível estabelecer um pacto de vida, pois não há perigo que os amantes, agora, se abandonem.

“Naquele dia, farei com eles um pacto,

com os animais do campo,

com as aves do céu

e com os répteis da terra” (Os 2,20)

Uma nova criação revive. Um novo mundo sem ba’ales e, por isso, sem arco, sem espada e sem guerra. Uma nova vida em segurança, semeada na terra, rica de trigo, de azeite, de mosto ao alcance de todos, ao alcance do povo.

Mais tarde, as palavras do Deutero-Isaías e do Cântico dos Cânticos, celebrarão esta intuição nascida na roça, na eira do povo.

Mas o deus ciumento e sisudo do templo, avesso a toda forma de erotismo, também, continuará exigindo sacrifícios, considerando impuro tudo que tenha a ver com sexo, com desejo e com liberdade.

Ainda hoje!

 

E se fosse uma deusa?

 

Em todos os textos que estudamos, mesmo com todas as variantes, é sempre o homem que faz o papel de Iahweh. O povo, porém, cultuava também outros deuses e deusas.

Foi o deuteronomismo que fortaleceu a monolatria, a exclusividade cultual a Iahweh que será a base do monoteísmo refinado e excludente do segundo templo.

Possivelmente, Oséias, Jeremias e Ezequiel foram expoentes deste deuteronomismo monólatra e, por isso, em nome de Iahweh/homem combatem com vigor o povo/mulher que cultua outros deuses/amantes, em outros lugares.

O movimento encabeçado pelo rei Josias, nem sempre por razões louváveis, buscou implantar institucionalmente a monolatria javista nas terras de Judá.

Mas como terá reagido a multidão que, ao tempo de Jeremias, prestava culto à “rainha do céu”?

Não vês o que eles fazem nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém? Os filhos juntam a lenha, os pais acendem o fogo e as mulheres preparam a massa para fazer bolos para a rainha do céu; depois fazem libações a deuses estrangeiros para irritar-me (Jr 7,7-8).

Apesar das poucas informações que temos, e ainda por cima, filtradas pelos olhos deuteronomistas, podemos intuir que se tratava de um culto muito popular, da cidade e do campo; culto que exige a participação efetiva da casa como um todo: filhos, pais e mulheres.

Era um culto a base de oferendas vegetais sem o sangue dos sacrifícios: são bolos, tortas, bebidas.

Sobretudo, nos parece, tratava-se de um culto “judaíta”. Muitos comentários procuram, talvez rapidamente demais, identificar a rainha do céu com a Istar, a deusa babilônica do amor e da fertilidade. Pode até ser, mas nos parece que aqui ela não seja incluída no rol dos outros “deuses estrangeiros”. Mesmo que ambos sejam censurados, nos parece que o culto à deusa é uma coisa, as libações aos deuses estrangeiros é outra.

Não fosse isso, não teriam sentido as palavras do povo judaíta que explicam a destruição de Jerusalém por causa do abandono do culto à rainha do céu.

De um lado, Jeremias explicava que:

“Toda a desgraça que fiz cair sobre Judá e Jerusalém (…) aconteceu por causa da maldade que cometeram (…) incensando a deuses estrangeiros que nem eles, nem vós, nem vossos pais conheceram” (Jr 44,2-3).

Do outro, porém, os homens e as mulheres do povo disseram:

“A palavra que falaste em nome de Iahweh não a queremos escutar. Antes continuaremos a fazer tudo o que prometemos: queimar incenso à rainha do céu e fazer-lhe libações, como fazíamos nós e os nossos pais, nossos reis e nossos chefes, nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém. Tínhamos então fartura de pão, éramos felizes e não víamos a desgraça. Mas desde que cessamos de queimar incenso à rainha do céu, e fazer-lhe libações (…) tudo nos faltou e nós perecemos pela espada e pela peste. Por outro lado, quando queimamos incenso à rainha do céu e quando lhe fazíamos libações é, por acaso, sem o conhecimento de nossos homens que lhe fazíamos bolos que a representam e oferecemos libações?” (Jr 44,16-19).

Este texto desafia nosso dogmatismo. O povo não considera o culto à rainha do céu um culto estrangeiro. Nenhum deus estrangeiro tinha o dever de tomar conta de Judá e de Jerusalém. Quem devia tomar conta era a divindade local (Iahweh ou/e a rainha do céu? Ou os dois?). Não tomou conta porque se aborreceu com o povo.

Trata-se de um culto em que o “gesto ritual” pertence às mulheres. Elas são as oficiantes do culto. Mas não se trata de nada clandestino. É coisa pública, sabida por todos, participada por todos, feita com o “conhecimento dos homens”.

Por que este conhecimento legitima o culto? Tinha uma componente sexual que, de outra forma, seria reprovada?

É difícil responder. Ir mais além, por enquanto, é especular. Mas as suspeitas ficam. A monolatria javista é fruto da revelação mosaica ou é produto posterior? O javismo era excludente, como quiseram os deuteronomistas ou convivia com outras manifestações religiosas e culturais?

Outros/as poderão responder, se quiserem. A arqueologia tem feito e está fazendo seus estudos[3].

A nós cabe dizer que neste culto “diferente” as mulheres têm espaço, tem lugar, tem desejo, tem iniciativa. Os corpos das mulheres têm lugar, tem espaço, tem desejo, tem iniciativa: os corpos das mulheres e o corpo da deusa, representado nos bolos a ela oferecidos pelas mulheres de Judá.

 

Vale a pena continuar pesquisando.

Vale a pena, e bem mais, continuar ensaiando novas relações, em que o amor e a fidelidade, a ternura e a justiça, o desejo e o gozo ditos e partilhados sejam sempre mais fortes que o ciúme, a censura, o castigo.

Que o homem seja sempre amigo, irmão, companheiro, amante… mas nunca, nunca marido! É o que buscamos teimosamente e incessantemente.

 

 

[1] Biblistas do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – www.cebi.org.br – CEBI e da Comissão Pastoral da Terra – www.cptnacional.org.br . E-mail: gallazzi46@gmail.com

 

[2] Os comentários costumam identificar estas palavras como reveladoras dos sentimentos de Jeremias, mas nada nos impede de considerar Iahweh como sujeito das mesmas.

[3] A presença de uma divindade feminina junto a Iahweh, no culto popular é atestada, também, pelas escavações de Kuntillat Ajrud, um pequeno quartel militar judaíta no Negheb, dos sec. IX-VII a.C. e pelos documentos do templo de Elefantina. Sinal da antiga religiosidade popular israelita/cananea, este templo venera a presença de uma divindade feminina junto a Yhú e de um filho, mas a consciência é de um culto israelita em todos os sentidos, baseado sobretudo nas festas popula­res. Esta expressão religiosa será excluída pela torá, mas continuará existindo tendo muito em comum com o judaitismo. Maiores informações em MAIER, Johann. Il Giudaismo del secondo tempio. Brescia, Paideia, 1991, p.56-58; RICCIOTTI, Giuseppe. Storia d’Israele. Torino, S.E.I., 1964,  2 vol. § 168-179.