Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença. Por frei Gilvander Moreira[1]
Vem aí setembro, o mês da Bíblia! Por que e para quê? Primeiro, porque dia 30 de setembro é dia de São Jerônimo (342-420), o tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata. Como profundo conhecedor das línguas hebraica, grega e latim e das culturas dos povos semita, grego e romanos e um dos pilares da patrística, São Jerônimo colocou a Bíblia na linguagem popular, acessível ao povo, o latim na época. Segundo, porque, com a Opção pelos Pobres e a Dei Verbum, um dos ótimos Documentos do Concílio Vaticano II, a leitura da Bíblia a partir dos pobres, de forma comunitária, militante, (macro)ecumênica e transformadora, foi incentivada e vem sendo feita há cinquenta anos. Inicialmente com Dia da Bíblia e sucessivamente, Tríduo Bíblico, Semana Bíblica e, assim, pouco a pouco, setembro se tornou o Mês da Bíblia.
Em Minas Gerais, há 25 anos, um grupo de biblistas do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI-MG)[2] publica anualmente um livrinho que busca ser um Texto-Base sobre o livro bíblico do mês da Bíblia: setembro. Em 2023, todas as pessoas e comunidades cristãs são convidadas a refletir e inspirar a caminhada, especialmente no mês de setembro, sobre a Carta aos Efésios. O livrinho do CEBI-MG tem como título “CARTA AOS EFÉSIOS”: andar no amor na Casa Comum – Toda a Criação respira Deus.[3] O livrinho é composto de seis artigos: 1) “Carta aos Efésios”: Carta? Homilia ou Tratado Teológico?, de Iêda Santos Leite; 2) A “Carta aos Efésios”, uma teologia para a resistência, de Western Clay Peixoto; 3) “Carta aos Efésios”: relações humanas baseadas no amor, de Lúcia Diniz; 4) Diálogo Inter-religioso na Carta as Efésios e no N.T., de Vânia Fonseca; 5) Agir ético libertador na “Carta aos Efésios”, de Gilvander Luís Moreira; 6) Mística e militância a partir da “Carta aos Efésios”, de Denis Wilson Silva.
Aqui partilho com você um primeiro aperitivo do artigo nosso que compõe o livro: Agir ético libertador na “Carta aos Efésios”. Leremos a “Carta aos Efésios”[4] buscando compreender, primordialmente, a dimensão ética deste texto bíblico, ancorando nossa interpretação na seguinte questão: Que tipo de ética, de agir, de atitudes, enfim, que postura cristã a “Carta aos Efésios” nos exorta a colocar em prática? Para respondermos a esta questão precisamos observar, atentamente, o tecido verbal deste texto bíblico.
Agir ético faz a diferença. Muitas vezes, influenciado/a por uma perspectiva excessivamente psicológica lemos os textos bíblicos buscando, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, modelos de personagens bíblicos que devemos imitar. Na perspectiva profética e sapiencial, mais do que imitação de personagens bíblicos (aliás, não somos papagaios que imitam outras pessoas!), o que os textos bíblicos pedem de nós é um agir ético, como o defendido no Evangelho de Lucas, onde a prática é decisiva. Isto é comprovado na obra lucana (Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos) com expressões, tais como: “Façam coisas para provar que vocês se converteram…” (Lc 3,8a); “As multidões, alguns cobradores de impostos, alguns soldados, … perguntam a João Batista: “O que devemos fazer?” (Lc 3,10.12.14). Um escriba pergunta a Jesus…: “O que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” (Lc 10,25) e depois de contar o “episódio-parábola” do Bom Samaritano, Jesus responde dizendo: “Vá, e faça a mesma coisa” (Lc 10,37). Muitos outros textos do Evangelho de Lucas podem ser evocados para respaldar a conclusão de que Lucas dá uma grande prioridade ao agir libertador. No primeiro versículo de Atos dos Apóstolos está: “… tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar” (At 1,1). A prática é recordada antes do ensinamento, o que quer dizer que acima da ortodoxia está a ortopráxis, a prática certa e libertadora. Mais importante do que ter uma “opinião certa” é ter uma prática correta, libertadora. Lucas quer dizer que uma das grandes características das primeiras comunidades é que elas eram comunidades de ação, de prática, de testemunho. Não se trata de qualquer tipo de ação, mas de ações solidárias e libertadoras.
Na Carta de Tiago se afirma, de forma enfática, que “a fé, sem obras, é completamente morta” (Tg 2,17.26) e em muitas outras passagens bíblicas. Por exemplo, no discurso final do Evangelho de Mateus (Mt 25,31-46) isso fica evidente em perguntas implícitas provocadoras que remetem diretamente para o nosso agir ético: “Eu estava com fome. Vocês me deram de comer? Eu era estrangeiro. Vocês me acolheram em casa? Eu estava nu. Vocês me vestiram? Eu estava doente. Vocês cuidaram de mim? Eu estava preso. Vocês me visitaram?” (Mt 25,35-36). Prestemos atenção no tecido verbal: “dar, acolher, vestir, cuidar e visitar”, todos verbos de ação. A pessoa é reconhecida como justa – “os justos” (Mt 25,37) – se agir acolhendo os clamores dos últimos: “Toda vez que vocês FIZEREM isso a um dos menores (injustiçados/as) de meus irmãos, foi a mim que o FIZERAM” (Mt 25,40): o evangelista Mateus faz questão de pôr na boca de Jesus Cristo tal afirmação.
Nunca me esqueço de um dos meus professores do mestrado em exegese bíblica, o da língua hebraica, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, que nos disse, ao terminarmos três anos de estudos intensivos da língua hebraica: “Estamos terminando o curso da língua hebraica, a língua por excelência dos profetas e da ética”. É o agir ético que faz a diferença na fidelidade ao Deus Javé, solidário e libertador, “Deus, que é rico em misericórdia” (Ef 2,4). O Novo Testamento é escrito em grego, mas carrega toda a herança judaica do agir conforme a vontade de Deus e não apenas do falar, louvar, celebrar culto a Deus.
Importa recordar que ética é muito mais que moralidade, a qual muitas vezes se restringe à postura de juiz/a que pensa estar na arquibancada da vida de onde se põe a julgar: “sou a favor disso, contra aquilo…” Ética diz respeito ao agir humano, está muito além de boas intenções. Enfim, veremos que a “Carta aos Efésios” exorta-nos a um agir humano libertador, humanizador e integrador com todos os seres vivos e a biodiversidade, em uma relação fraternal, justa, solidária e respeitosa geradora de condições objetivas que garante a vida em todas as suas expressões.
Obs.: No próximo texto, continuaremos esta reflexão na “Carta aos Efésios”.
15/06/23
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Cf. www.cebimg.org.br
[3] Caminho para adquirir o livrinho Texto-Base sobre Carta aos Efésios: https://cebimg.org.br/2023/06/07/mes-da-biblia-2023-carta-aos-efesios-tudo-respira-deus-no-cebi-mg/
[4] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.